É véspera de Natal. A família Wan já começava os preparativos para a ceia. Assim como várias outras famílias ao redor do mundo, os Wan estavam profundamente animados para a data festiva, com exceção, talvez, da caçula, cujo nome significava “aquela que viu o mundo”, Iruwa.
A garotinha olha de relance a árvore de Natal, pensativa, e se joga logo em seguida no sofá de frente para a cozinha. Sua mente se encontra longe, viajando para as últimas aulas do ano, mais precisamente no que sua professora havia falado, dias atrás, sobre uma lenda popular que foi se perdendo na comunidade com o passar do tempo: de se fazer um pedido na noite de Natal para que ele fosse realizado. Iruwa, ao contrário das demais crianças, não tinha ficado nem um pouco feliz com essa afirmação. A razão disto é que no Natal anterior sua avó tinha comentado sobre essa mesma lenda e ela, como toda criança, havia acreditado nas palavras da senhora.
O problema é que um ano se passou e nada do que ela pediu foi realizado. Iruwa contou nos dedos e tinha feito todos os passos corretamente: exatamente ao amanhecer do sol, quando as luzes da árvore ainda clareavam a pouca escuridão remanescente da noite, acendeu uma vela, fechou os olhos, fez o pedido e soprou. Ela queria uma bicicleta nova, algo que seus pais ou o Papai Noel (ela sabia que as duas figuras eram a mesma pessoa, mas fingia que acreditava o contrário) não podiam dar à ela devido a sua condição financeira. Seu pai ajuda numa das fazendas locais, cuidando do plantio; e sua mãe faz uns bicos como manicure para render um dinheirinho extra no final do mês. Iruwa ainda sabe que além dela, há as despesas de seus outros irmãos: Moses (o do meio) e Jafari (o mais velho).
Suspira, enquanto encara seus irmãos se divertindo fazendo o que parecia ser uma tentativa de biscoito. A massa estava estranha, meio molenga, e quanto mais eles amassavam, mais parecia se desfazer. Iruwa dá um leve sorriso, mas logo a cara ranzinza volta a face, lembrando-se que mais uma vez ganharia uma boneca de pano, ou uma meia decorada. Seus pais não tinham culpa, no entanto. As pessoas poderiam chamá-la de mimada, porém, para uma criança, é difícil querer tanto algo que sabe que não poderá ter, mas mesmo assim, ter uma falha esperança.
— Por que essa expressão, mocinha? É quase Natal, afinal. — Sua avó pergunta, sentando-se ao seu lado. A garota a olha surpresa, não tinha percebido sua presença, muito menos os minutos que tinha se passado desde que ficara parada, parecendo uma das plantas que sua mãe cultivava no pequeno cômodo.
— Acho que não gosto mais do Natal, vovó. — A mais velha dos Wan arqueia as sobrancelhas. — O Papai Noel não existe e desejos não se realizam, então, qual é objetivo de se comemorar? — Iruwa é surpreendida com a risada de sua avó, que logo em seguida, dá um pequeno e leve tapinha na sua cabeça.
— O Papai Noel pode não existir, mas você está errada, minha querida. Desejos se realizam, desde que você acredite.
— Não é verdade. — Iruwa cruza os braços. — Lembra aquela lenda que tinha comentado comigo? Fiz tudo direitinho e não adiantou de nada!
— E o que você desejou? Foi do fundo do seu coração? — Iruwa pensa por um momento.— E o mais importante, é o que você anseia do fundo de sua alma?
— Como assim vovó?
— O Natal é uma data tão mágica, que é possível realizar o desejo de alguém, mas somente se o desejo dessa pessoa for puro, sincero ou necessário. Talvez o que você desejou não se encaixe em nenhuma dessas categorias. — Afaga os cabelos da mais nova, como sempre faz quando está dando um conselho.
— Então meu desejo não é bom o suficiente? — Iruwa pergunta frustrada.
— Não é isso querida. Talvez não seja realmente o que você quer e precisa. Tente olhar a questão por outra perspectiva. — A menor se deita no sofá, pega uma almofada e se encolhe. Está cansada da conversa, afinal, tudo indica que suas chances de ter uma bicicleta — algo que ela quer muito — tinha evaporado, atravessado o céu e sumido entre as estrelas.
— Pense com carinho no que conversamos, está bem? Hoje é véspera de Natal, você terá uma nova oportunidade para fazer seu pedido, se ainda quiser tentar e acreditar, é claro. — Sua avó pisca. — Enquanto ajudo aqueles molengas que claramente não estão fazendo uma parte vital da sobremesa de forma correta, por que você não dá uma volta? Pode clarear sua mente. — A matriarca dos Wan se retira do ambiente a passos lentos. Embora sua aparência fosse relativamente jovial, sua idade avançada as vezes a denunciava, como agora.
Iruwa gosta bastante de sua avó e a vê como um exemplo. Uma mulher admirável, que cuidou sozinha de um filho por seis anos, tendo que enfrentar não só as dificuldades diárias como educação, controle de dinheiro e olhares dos vizinhos, como a dor e a angústia por não saber se seu marido voltaria vivo ou não depois da guerra. Felizmente, o senhor Wan retornou para casa, embora não totalmente ileso, falecendo alguns anos depois, dormindo. Sua esposa, apesar de ter ficado triste pela perda, se sentia leve por ter recebido de presente seu marido de volta naquela manhã do dia 25 de Dezembro de 1945.
A senhora Wan sorri, abrindo a massa ao lado dos seus outros dois netos. Ela, mais do que ninguém, sabia a força de um desejo de Natal, e esperava que sua neta pudesse ter a mesma experiência, já que poderia mudar a vida de todos. Se não fosse a regra — somente um único desejo durante toda a sua vida — ela mesma faria, porém, em seu coração, ela sentia-se bem. Sua neta possui a mesma qualidade que ela admirava em seu falecido marido, a caçula só ainda não tinha descoberto isso.
Uma hora tinha se passado. O ponteiro do relógio marca exatamente 17:00 quando Iruwa se espreguiça, esfrega os olhos e começa a se levantar aos poucos. Confusa, pergunta a si mesma quando tinha dormido e fica até um pouco nervosa pensando ter perdido algum evento importante em família, no entanto, relaxa segundos depois com a sensação de confiança. Ela sabe que sua família nunca faria nada especial sem ela. Além do mais, era muito cedo para começar a celebração, até mesmo para seus pais, que amavam inventar várias brincadeiras antes da ceia.
Olha para a mesa de canto do lado de sofá. Um bilhete deixado pela sua avó — ela sabia pela caligrafia — pedia para Iruwa distribuir alguns dos biscoitos assados para os vizinhos ou para qualquer outra pessoa que passasse na rua. Era claramente uma forma de tirar a garota do sofá e, consequentemente, daquele sentimento que a atormentava.
A contragosto, Iruwa resolve sair de casa. Embora não tivesse com a mínima vontade, ela sempre atendia os pedidos de sua avó — ou dos seus pais. As únicas exceções que a fazia receber o título de “desobediente” era seus irmãos mais velhos, que ela fazia questão de fazer o contrário do que eles queriam, fato esse que os fizeram desenvolver a “técnica do inverso”, ou seja, falar o que queriam que ela fizesse de uma forma que desse a entender que eles não queriam. Mas bom, essa já é outra história.
Segurando o cesto de palha de biscoitos com um tecido estampado xadrez vermelho e branco cobrindo-os, a garota anda pela rua. Muitas pessoas, por incrível que pareça, não se encontravam dentro de suas casas. Algumas crianças brincam umas com as outras, se divertindo com uma simples bola, feita do que parecia meias antigas e sujas; os mais velhos, conversam com animação.
— Não posso aceitar isso. — Um deles comenta, despertando a curiosidade de Iruwa e fazendo com que ela ande mais devagar e preste atenção na conversa.
— Claro que pode! Eu ganhei dois desses na fábrica. — Estende um peru embalado para o outro que parece estar emocionado.
— Nem sei como agradecer... — Diz emocionado. — Não tínhamos como comprar carne alguma esse ano. Na verdade, estávamos pensando em fazer uma ceia com arroz, batata e um pouco de farofa. Obrigado mesmo.
— Amigos são para isso, não é?
Iruwa se aproxima, sorrindo um pouco pela cena que tinha acabado de presenciar.
— Vocês aceitam um biscoito? — Os homens mesmo sem entender, aceitam. A garota, mais animada e não mais mal-humorada, segue o seu caminho.
Uma padaria, do outro lado, chama sua atenção. A dona, de nome Lourdes, era conhecida porque sua mãe fazia as unhas dela quase toda semana. Uma mulher de poucas palavras, quase nunca conversava e parecia conhecer somente uma cor: vermelho. Não importando se fosse Natal ou não, era a cor que sempre pintava as unhas das mãos e se vestia; da cabeça aos pés. Algo que ninguém sabia sobre Lourdes é que ela não era metida — como muitos achavam — mas sim, reservada. Dona de um coração grande, a dona da padaria sempre fazia pães a mais nos finais das tardes para dar de comida aos animais abandonados na rua. Se alguma criança aparecesse nesse horário e tivesse fome, ela também entregava alguns pães sem pensar duas vezes.
Iruwa, assim como alguns moradores da região não gostavam dela. Porém, seu pensamento mudou após vê-la se agachar e dar vários pedaços de pão esfarelados para um gato e seus três filhotes.
— Aceita um biscoito? — Lourdes a olha desconfiada. — É uma lembrança de Natal. Minha avó quem fez, ela cozinha muito bem. — Lourdes se levanta e ainda um pouco receosa, morde um pedaço.
— Realmente, nada mal. — Joga um pedaço de pão dentro da cesta de biscoitos. — Feliz Natal, criança. — Iruwa come alguns dos pedaços de pão recém-saído do forno e joga mais alguns para os gatos que começam a miar como se dissessem um “obrigado”.
Esses dois encontros não foram os únicos que começaram a mudar a perspectiva de Iruwa. Ela nunca tinha parado para observar os vizinhos a sua volta, ou as pessoas que passavam temporiamente pelo seu bairro. Todas tinham suas próprias obrigações e problemas para serem resolvidos. Com toda certeza, havia desejos que elas queriam realizar. Naquele final de tarde, Iruwa ainda conheceu pela primeira vez o “Mascarado”, um homem que escondia o rosto para que, de forma anônima, pudesse doar boa parte de seu salário para moradores de rua. Ele poderia ter uma vida melhor. Sua casa era simples. As pessoas que já foram na sua casa diziam que na sua sala por exemplo, só havia um sofá, uma televisão colocada no chão e um pequeno ventilador.
A vizinha fofoqueira, apelidada de “Manchete”, embora não fizesse atos caridosos nem sacrifícios em prol da humanidade, na época de Natal (principalmente) servia como porta-voz e era a primeira a juntar a comunidade para arrecadar doação de brinquedos. Iruwa não sabia, mas quando tinha apenas dois anos de idade e seu pai estava desempregado, o brinquedo que ela ganhara de Natal, um ursinho de pelúcia de pelugem dourada, foi ela quem tinha conseguido um doador.
Iruwa olha sua cesta praticamente vazia, pensando em todas as pessoas para quem ela tinha entregado os biscoitos. Mesmo se for apenas de vista, ela conhecia a todos, porém, nunca tinha parado para prestar atenção em cada um deles. São pessoas comuns, virtuosas, mas com defeitos. Não são perfeitas, mas fazem o possível para melhorar a vida uns dos outros.
Vendo-as, a garota começa a refletir sobre seu próprio desejo e percebe o motivo dele não ter se realizado.
— Vovó, vovó! — Entra apressada, gritando animada.
— Que agitação é essa, menina? Não me diga que viu um fantasma. — Brinca sua avó.
— Eu sei qual é o problema do meu desejo. É egoísta. Quando eu fiz, estava pensando somente no fato de meus pais não me presentearem com uma bicicleta, mesmo já tendo pedido. E estava chateada com meu presente do ano anterior. Não considerei o sentimento deles, nem dos meus irmãos. Sei que eles também devem querer algo que nossos pais e nem eles mesmos podem comprar, mas só pensei em mim mesma. — A matriarca dos Wan a abraça, dando leves batidinhas nas costas.
— Vejo que o rápido passeio valeu a pena. — A menor sorri. — Vai tentar um novo desejo hoje?
— Acho que sim. Vou tentar pensar no meu pedido com outra perspectiva, como a senhora disse.
— Então, deixei-me alertá-la. — Se aproxima. — Se um pássaro raro, de aparência exótica, de penugem preto e vermelha aparecer e pousar no seu ombro, não se assuste. Significa que tudo ficará bem.
— Como assim vovó?
— É um papagaio-drácula. Dizem que toda família possui seu guardião e ele é o nosso. Sua presença na noite de Natal, em especial, é para realizar os desejos daqueles que pedem desesperadamente com o coração.
— Mas eles não estão extintos? — A senhora ri.
— Não totalmente. Os humanos podem ser idiotas as vezes. — A pequena faz uma careta. — Desculpe.
— Não lembro da senhora contando essa parte da lenda na primeira vez.
— Porque sabia que tinha uma grande possibilidade de não dar certo. Você era muito imatura ainda, mais do que hoje.
— Vovó! — Iruwa resmunga e a matriarca dá uma boa gargalhada, pedindo licença para descansar para a ceia que aconteceria mais tarde.
A passos cautelosos, Iruwa vai até a sala de estar se encontrar com a árvore de Natal. Segurando uma vela, ela fica diante da brilhante construção elaborada pela sua família. Não era majestosa como as revistas que ela costuma ler, onde a árvore possui vários enfeites diferentes e é inteiramente cheia, mas também não era totalmente simples. Seu pai tinha conseguido alguns bons pedaços de tecidos e sua mãe, sendo bom costureira e artesã — apesar dela não querer admitir nem trabalhar nessa área — tinha construído bonecos de neve, cervos e bolas natalinas com os retalhos. No começo seu pai pensou que não seria uma boa ideia, mas depois de ver pronto, ficou todo empolgado. Inclusive, decretou que seria uma tradição de Natal: fazer todos os anos os próprios enfeites.
Iruwa afasta a cortina e abre a janela. Os primeiros raios de sol começam a adentrar a casa.
— Está na hora. — Iruwa fecha os olhos e pensa no seu pedido de Natal, desejando do fundo do seu coração que ele se realize. — Desejo que a vida não só dos meus pais, como de todos da comunidade melhore. Desejo que seus problemas desapareçam ou diminuíam e que nunca lhes faltem felicidade. — Assopra, apagando a vela. Um vento gostoso adentra o ambiente e a figura imponente do sol aparece, dando a garota uma bela vista, repleta de cores.
Esquecendo o que sua avó lhe dissera, Iruwa se vira, ainda emocionada, com a intenção de chamar sua família para compartilhar a vista, quando um papagaio-drácula pousa em seu ombro, a fazendo parar imediatamente.
O papagaio-drácula emite um barulho que nos seus ouvidos parece engraçado, o que faz com que a tensão que a menina estava sentindo desaparecesse. Ela o encara. É tão bonito pessoalmente quanto nas fotos que tinha visto na escola, na matéria de biologia. O pássaro esfrega o bico no dorso de seu pescoço e abre as asas, como uma espécie de cumprimento. Iruwa tenta tocar suas penas, no entanto, antes que conseguisse, o papagaio alça vôo, deixando uma pena vermelha cair e tocar sua mão, encaixando-se entre seus dedos.
Olhando novamente para a janela, Iruwa sorri, tendo a certeza de que seu desejo em breve seria realizado.
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