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Papai Noel do Procon

Foto do escritor: Lucas de LuccaLucas de Lucca

Conto de Lucas de Lucca, spin off de "A Revolução dos Unicórnios"


A data predileta do Papai Noel do Procon chegou e a burguesia tremia tremendo.

O natal é lindo, mas os dias antes dele são a maior oportunidade para golpistas trajados de comerciantes honestos. As lojas da 25 de março bradavam suas promoções e no balcão nenhuma nota fiscal era emitida. Se um presenteado não gostasse das meias não teria com quem reclamar, quem o proteger, principalmente em 2023, no Reino de Deus, o novo Brasil.

Mas isso era realidade apenas aos desinformados, que não conheciam o beco do Papai Noel do Procon. Quando o Rei destituiu a polícia e a república, todos os órgãos, incluindo o Procon, foram descontinuados.

Um dos membros dessa nata da defesa ao consumidor não conseguiu desapegar de sua vocação, mas também não poderia continuar lutando contra os golpistas pela lei. Sem opção, ele se uniu aos rebeldes, contra o Rei, e passou a proteger os trouxas de São Paulo com seus argumentos e, na maioria das vezes, com os punhos.

— Todo dia um malandro e um otário saem na rua — ele dizia enquanto tomava um copo de Skol. — E eu estou no beco para que os dois voltem pra casa tão ricos, ou pobres, como antes.

— Você é paranoico, isso sim — dizia @TomazYoung, um membro dos rebeldes.

— Cada um de nós luta do seu jeito, e contra quem mais nos feriu — Noel ajeitava sua camisa branca, quase estourando nos braços musculosos. — Eles roubaram tudo de mim e jurei minha vida não deixar ninguém passar pelo mesmo.

— Sei, sua esposa né — Tomaz concordou, saindo de perto do velho ranzinza.

A sede dos rebeldes em São Paulo era comandada por @NaoSou1Unicornio, uma menina mundialmente conhecida por se opor ao Rei publicamente. Por isso o lugar era a cara dela, cheio de neons, unicórnios nas paredes, pendurados no teto e coisas assim.

Todos se orgulhavam da causa, da luta dos rebeldes, menos Noel, que se sentia mais velho do que realmente era. A barba branca e a mania de bater em comerciantes o tornara antiquado, do ponto de vista da maioria.

— Jeff, abre pra mim — ele pediu ao porteiro.

Jeff não era apenas o porteiro, mas naquele dia era seu papel. E ele odiava ser porteiro. Levantou vagarosamente da cadeira, olhou pela abertura e bocejou com todo gosto.

— Tô com pressa, Jeff — Noel reclamou, com a voz como um engasgo.

— Entendo — ele respondeu sem preocupação, puxando a alavanca ao lado do portão. — Prontinho — fez um aceno debochado para a porta e deixou o sujeito enorme passar, mas não sem uma das suas piscadelas debochadas.

Noel saiu da ruela por um dos vários caminhos possíveis, ignorando a piscadela, e caminhou apressado até seu ponto. Um dia aquele beco fora uma boca de drogas, mas hoje era lar de um grupo de vigilantes. Entre eles, apenas Noel era da resistência, os outros se fingiam de apoiadores do Rei para poder se sustentar e a noite socavam bandidos.

— Noite boa? — Noel perguntou, vendo que Sharika e Coala estavam por ali, curtindo uma música dos anos noventa.

— Nada até agora sobre direito autoral — reclamou Shakira, dando um beijinho na bochecha do musculoso.

— E você meu parceiro? — Coala era famoso por parecer preguiçoso, apesar de ser muito direto com quem fazia mal à natureza.

— Tudo em paz, meu irmão — ele respondeu, sorridente como sempre.

— Nada pra mim também, pelo visto — reclamou Noel, sentando na poltrona vermelha e desgastada que usava no beco.

Shakira ergueu as sobrancelhas e tirou do bolso um papelzinho, entregando para o colega.

— Uma menina bem assustada trouxe isso mais cedo.

A letra era feia, quase um rabisco. Dizia que a irmãzinha teria um natal horrível.

— Outro ursinho com pulga — reclamou em voz alta.

Também dizia que a compra foi feita na loja de Manuel Carlos, um conhecido antigo de Noel. O sujeito era notório por dar golpes e repassar carga roubada, além de ter um péssimo, para não dizer inexistente, atendimento aos clientes.

Manoel Carlos era protegido pelos arcanjos, a nova polícia criada pelo Rei, e isso era problema.

— É aquele sujeito né?! — Shakira perguntou, deixando claro que lera a carta. — Que você quase se deu mal.

— Esse mesmo, continua aprontando mesmo depois do susto — Noel suspirou e guardou a carta com carinho no bolsinho do colete. — Vou ter que ser mais convincente dessa vez — ele acariciou os nódulos do punho com pesar.

— Esses caras sempre repetem, nunca aprendem — Coala estava com uma marmita vegetariana no colo e comia sem pressa. — Depois daquela vez, onde fomos juntos e tudo pegou fogo, parei de dar segunda chance.

— Não consigo, ainda não. Matar uma pessoa é ir além do que meu dever permite. Eu devo inibir o mal, não cortar uma cabeça da hidra — Noel se pôs de pé.

— As vezes a hidra não tem mais cabeças —Shakira sacou um cigarro de sabe se lá onde e acendeu com o isqueiro.

— Boa noite pra vocês, isso deve demorar mais do que o habitual.

— Boa noite e boa sorte — desejou Coala, sendo seguido por Shakira que acenou com os olhos, enquanto dava a primeira puxada.

Noel conhecia o local predileto de festa de Manuel Carlos e sua primeira parada seria no Canto do Além. O espetáculo no palco era provocativo e erótico, mas nunca chegava à nudez. Era o lugar ideal para pessoas casadas, quando seus companheiros são tolerantes o suficiente para permitir o quase.

— Boa noite — ele cumprimentou o segurança, que o conhecia da academia.

— Veio curtir ou fazer as tuas palhaçadinhas? —perguntou, em tom de brincadeira.

— Palhaçadinha, como sempre — Noel deixou escapar um risinho.

— É contra o meu chefe? Porque ele entrega tudo que o pessoal pede e tem nota fiscal. Você sabe — o segurança era tão musculoso que não tinha pescoço, porém falar do chefe o fazia tremer.

Noel ajeitou o bigode, renovando as curvinhas das pontas, e respirou o ar sujo de São Paulo.

— Nunca faria mal a um homem como Geraldo —disse enfim, batendo no ombro do sujeito enquanto passava.

As pessoas na fila ficaram nervosas com o furador, mas nenhuma ergueu a voz já que duas geladeiras falantes concordavam com a transgressão.

O ambiente em Canto do Além era como esperado de uma boate erótica. Neon rosa e azul nas paredes, luz avermelhada no teto e mesas acolchoadas. Meninas e homens com pouca roupa atendiam as mesas e, no palco, Glória fazia seu espetáculo.

Glória era uma das poucas estrelas que conseguia ditar como se vestia no estabelecimento. O lugar não se tratava de música antes, mas com a perseguição dos arcanjos à comunidade LGBT, seu Geraldo, que teve o filho morto, decidiu abrir a casa para artistas sobreviventes.

Ela terminou a música e pediu ao DJ que tocasse uma batida, enquanto saía do palco por trás e caminhava até Noel, que bebia uma dose de whisky de costas.

— Me esperando, como sempre — ela disse, sentando ao seu lado. — Quem você quer hoje? Não me diga que finalmente veio pescar o seu Geraldo — ela riu, fazendo o barman dar risada também.

Quando Noel olhou para eles o barman parou de rir, com medo que realmente fosse o caso.

— Manuel Carlos — deu um gole vagaroso.

Glória revirou os olhos e levantou da cadeira, indo embora em passos largos. Noel se levantou e a puxou pelo braço, algo que a artista detestava.

— Tira a mão de mim! — gritou, fazendo todos olharem a cena.

— Manuel, Carlos — falou pausadamente, sem constrangimento com a atenção de todos.

— Você sabe bem meu problema com ele e você não devia ter problema nenhum com esse sujeito — fez cara feia, como se espantasse mal olhado, e continuou quase correndo para os fundos.

O DJ, entendendo que o show demoraria a voltar, começou a tocar canções antigas da artista e uma dançarina assumiu o palco imediatamente.

Noel suspirou e se apoiou no balcão de costas, sentindo que a noite ficaria bem mais longa sem a ajuda de Glória.

— Olha, papaizinho, eu vi onde o Manuel Carlos foi — disse o barman, chamando os olhos do mal velhinho. — Mas preciso de um presente — o olhar do sujeito era visceral, a voz melada, uma combinação horrenda.

— Não sou rico, olha minha cara de quem dorme em Ortobom.

— Dinheiro é um problema geral, nem peço mais — ele sorria enquanto falava, um maníaco. — Quero a bola esquerda dele.

O rosto de Noel era de espanto, mas o barman ria, como se aquilo fosse uma grande piada levada a sério.

— Você é maluco! — Noel se afastou do bar, com asco do sujeito, e duvidando que soubesse de algo.

— Espera! — ele quase gritou, estendendo o braço. — É sério, eu vi ele — a risada do sujeito incomodava. — E se esse presente é demais pra você, me traz outra lembrancinha que eu me contento, só não me deixa de mãos abanando — o maníaco ficou sério de imediato, fazendo Noel engolir em seco mesmo tendo o dobro do tamanho. — Se não me trouxer nada dele, eu vou ter algo seu na minha coleção.

Noel, enraivecido, partiu na direção do balcão, tentou agarrar o pescoço do sujeito que se esquivou pra trás.

— Um presente depois, a informação agora — ele disse, espumando de raiva das brincadeiras do sujeito.

O barman voltou para o balcão, tranquilo como se não houvesse acontecido nada, e apontou para a porta dos fundos.

— Ele foi até as privativas, no segundo andar do prédio na frente daquela porta.

— Não tem nada lá, é a porta dos fundos — reclamou Noel, coçando os dedos.

— Tem sim, você que nunca teve a chance de conhecer — o maníaco sorria com desdém. — Passa pela porta e abre a na frente, de um prédio que não parece nada demais. Ali ficam os privativos, quartos e salas que são reservadas por quem pode.

— E Manuel Carlos pode, com certeza — Noel olhou a porta e sorriu. — Obrigado, moleque, se for verdade te trago um presente — socou os punhos e saiu apressado pelos fundos.

A porta do outro lado da porta não estava trancada e a escada parecia de um prédio de baixa renda. Noel subiu com um passo cada dois degraus. O corrimão estava meio solto e o metal mal pintado. Era difícil acreditar que aquele lugar era o point dos bem de vida. Mas se fosse verdade, precisaria parecer mentira.

No topo do segundo andar havia um sujeito, mal encarado, vestido com uma regata de basquete dos Nets.

— O que tu quer aqui? — ele perguntou, e Noel socou os punhos. — Nem vem irmão.

— Me fala cadê o Manuel Carlos — disse rugindo.

— Que porra de Manuel Carlos, eu moro aqui doidão — se não estivesse com uma regata daquelas, quem sabe Noel acreditaria.

— Não quero te encher de porrada, você tá fazendo teu trabalho. Mas, sendo bem direto contigo — o defensor do povo chegou perto do homem, percebendo que ele não era tão corajoso, mas tinha uma arma. — Eu vou encher teu chefe de porrada, e essa arma aí... — apontou pra pistola escondida no cinto.

O segurança abriu a guarda pra pegar a arma, mas era a ideia de Noel desde o princípio. Ele enfiou a mãozona e arrancou a pistola do cara, apontando pra sua cara vermelha de medo.

— Perdi, perdi —ele disse, com as mãos ao alto.

— Perdeu mesmo, agora onde eu pego o Manuel Carlos?

Segundo o segurança, o sujeito que era procurado estava naquele andar, na terceira sala pra dentro, longe das janelas. O corredor não era longo, mas fazia curva, e cada lateral tinha uma porta. Na terceira esquina uma luz por baixo da entrada ajudava a entender que Noel estava no lugar certo.

— Ho ho ho — anunciou Noel, com todo o pulmão, chutando a porta que cedeu.

Com os punhos levantados ele entrou na sala, dando de cara com Manoel Carlos em uma mesa imponente. Na mão ele tinha um copo com whisky e gelo e na outra um charuto fumacento. O topo da cabeça calva estava alinhado e o sorriso no seu rosto largo não combinava com o musculoso ex-fiscal que entrava gritando.

Noel, safo, parou na entrada e olhou ao redor, para notar que armas apontavam pra ele. Ergueu os braços percebendo que era uma emboscada.

— Veio atrás disso? — Manoel Carlos deixou o charuto no cinzeiro e atirou no chão, aos pés de Noel, um ursinho que estava sobre a mesa.

O ursinho acertou o carpete vermelho fazendo voar pó e pulgas, que corriam para se esconder. Noel notou que havia uma mulher assustada e encolhida no canto. Devia ser a mula usada por Manuel Carlos. Ele levou a mão até o bolsinho do colete e se sentiu usado, como se carregasse traição no peito.

Respirou o ar pesado de São Paulo e manteve a cara fechada. Cruzou os braços e soltou o oxigênio sem pressa.

— Esperar o papai Noel acordado é coisa de criança levada — disse, fazendo os pistoleiros sorrirem, querendo rir.

— Você faz piada porque acha que já morreu, mas está enganado — Manoel Carlos se levantou e caminhou até Noel, que caso se movesse tomaria um tiro. — Vou te tratar como vem tratando a mim e meus amigos — o comerciante passou seus dedos nojentos na barba de Noel, que se manteve estático. — Levem ele!

Os sujeitos partiram pra cima de Noel, que percebendo a oportunidade não a deixou escapar. Com as armas abaixadas, partiu para a porradaria e derrubou dois dos pistoleiros. Tomou alguns socos no rosto e no estômago, e alguém chutou a parte de trás do seu joelho, levando-o ao chão.

— Acabou? — debochou Manoel Carlos, sentando novamente na cadeira e mesa imponentes.

Noel viu uma das pistolas balançando no coldre à sua frente, e ele não tinha terminado. Agarrou a arma com força e se jogou na direção de Manoel Carlos, obrigando os seguranças a fazerem força para o outro lado.

O ângulo era perfeito. A bala saiu retinha, mas o maldito burguês se assustou com a cena e virou. A bala acertou, foi possível ouvir o som da carne, mas um soco nocauteou Noel e no próximo instante ele já não sabia onde estava.

***

— Bom dia, Noel — a voz de Manoel Carlos fez o ex-fiscal se decepcionar.

— Não te matei ainda? —perguntou, sentindo o sangue na boca.

— E nem vai, porque agora você tem um novo velho emprego — o capuz foi retirado e Noel viu que estava em um escritório, muito parecido com o do Procon onde trabalhava.

— Só pode ser piada. Morri e fui pro inferno.

— Metade disso é verdade — Manoel Carlos estava na frente de Noel, sorridente e com uma quantidade insana de papéis nas mãos. — Cada documento desses mostra claras violações do código de defesa do consumidor e, detalhe, todos são dessa semana — ele jogou os papéis sobre a mesa da sala.

— Só mostra o cretino que você é — rugiu Noel.

— Na verdade mostra todo tipo de violação que eu e meus sócios fizemos em São Paulo desde que o mundo é mundo, e continuaremos fazendo. Com Procon, sem Procon, com Noel e agora sem Noel — ele puxou um dos papéis e colocou em um projetor.

A máquina transmitiu a imagem na parede branca logo á frente. Uma porta que Noel não via se abriu e Manoel Carlos cumprimentou alguém.

— Esse será seu novo companheiro, apesar de que você nunca o verá, apenas escutará sua voz explicando as ilegalidades, e lendo os trechos mais suculentos desses papéis —explicou.

— Bom dia, Noel, teremos muito tempo juntos — disse o sujeito, sem ser reconhecido pelo encarcerado.

Manoel Carlos sorria longilíneamente, esfregando as mãos como uma mosca.

— Que dia glorioso, que manhã feliz — ele dizia. — E caso ache que esqueci de algo, não esqueci — ele deu a volta em Noel e uma força enorme, provavelmente de mais de um homem, segurou a cabeça do preso enquanto um aparelho era colocado em seu rosto. — Prontinho — falou Manoel Carlos esbaforido. — Agora seus olhos nunca se fecharão e sua boca sempre terá comida e água, mesmo que você não queira.

O aparelho maldito mantinha as pálpebras de Noel estaladas e um tubo descia pela sua garganta. A sensação era terrível, não poderia ser pior que aquilo.

— Boa sorte tentando morrer — Manoel Carlos riu, riu alto, e deixou a sala saltitante.

Noel balançava a cabeça, estava em prantos, a situação o quebrara. Tentou virar o rosto para ver se havia alguém ali, mas não conseguiu, até ouvir a voz que o cercaria nos próximos meses.

— Vinte e um de dezembro de dois mil e vinte e três, loja de eletrônicos da china um. O cliente foi atendido por funcionário que vendeu um aparelho usado, como se fosse novo. O cliente pagou quatro mil e quinhentos reais, dos quais quatro mil foram lucro. Cliente não retornou até a loja e foi avisado na compra que não há garantia — ele mudou a página, sem ser visto. — Caso dois, no mesmo dia, mas na loja ponto do tênis, do senhor Manoel Carlos. Cliente buscava um calçado da Nike, cujo preço na internet antigamente era menor que o da loja. Foi dado desconto para compensar o preço e o cliente comprou o produto, porém o produto era falsificado e ele só notará após os três meses de garantia legal, que é quando o produto costuma apresentar defeitos.

Noel começou a resmungar, pedindo para seu algoz da leitura parar com aquilo, que não fazia sentido. Mas ele continuou por meses. O turno trocava duas vezes por dia, mas a voz do sujeito parecia sempre a mesma. Noel só sabia que trocavam porque a porta abria e fechava de vez em quando e escutava passos.

A tortura era lancinante para Noel, ver todos os clientes enganados, sabendo que era verdade e que ninguém faria nada por eles. Reclame Aqui não existia mais, Procon foi descontinuado e o Rei não pensou nesse aspecto, e provavelmente não pensaria tão cedo já que gastava o tempo exterminando tudo que era diferente dele.

Noel tentou de tudo. Tentou falar, tentou cuspir o tubo, tentou não dormir, tentou cuspir de volta a água e a comida líquida. Nada funcionava, ele não se livraria daquela situação sozinho e ninguém parecia querer ajudá-lo.

Os dias viraram meses e os meses quase viraram anos.

A garganta de Noel ficou mole, desistiu. Seus ouvidos zuniam, mas a voz estava já dentro da sua mente. Os músculos murcharam e a alimentação que lhe davam mantinha o corpo sobrevivendo, mas no limite.

Aquele dia em especial ele sentiu vontade de viver. Pediu a Deus em seu pensamento, algo que perdera a esperança muito tempo atrás, por um ar puro, uma comida que ele sentisse, e por uma alma bondosa que o guiasse para a vida. Viver, era só o que ele desejava. Estava trancado há muito tempo, vendo e ouvindo sofrimento atrás de sofrimento, enquanto pessoas cruéis continuavam tornando a vida do povo a pior possível.

Mas naquele dia a porta abriu e não fechou, e a voz não voltou a falar para ele. Os sons estavam diferentes, o ar também, mais quente que o habitual.

O barulho que vinha da porta cresceu aos poucos e eram passos. Junto dos passos o som de algo batendo com violência ecoava. A mente de Noel viajava, tentando evitar focar naquilo, que devia ser sua primeira alucinação.

Mas então ele ouviu:

— Restaurante chinês que usa carne de gato no lugar da de boi, lucro perto dos trezentos por cento — mas não era a mesma voz. — Meu deus, tem um homem aqui!

Uma mulher, era uma mulher, e ela tocou no braço de Noel. O velhinho levou seus olhos até os dela e sentia seus dedos, tinha que ser real.

Ela tirou o aparelho das pálpebras, que a esse ponto estavam tão secas que poderiam quebrar, e alguém a ajudou a tirar o tubo, que estava nojento, podre.

— Meu deus, que lugar era esse — ela disse, desfazendo as presilhas que mantinham Noel parado.

Quando seu braço ficou livre, o homem, preso há meses ouvindo casos de abuso com consumidores, agarrou o punho da mulher e a observou com atenção. A menina tinha pouco mais de vinte anos, olhos escuros e o cabelo preto, não a reconheceu, mas viu que estava assustada, porém com muito ódio.

— Quem é você? Qual o truque? — ele berrou, fazendo outras pessoas correrem até ali.

A menina começou a chorar e abraçou Noel, que sentia as gotas caindo nas suas magras costas.

— Não tem truque, acabou — ela dizia, sem parar, sentindo como se fosse a própria dor do homem. — Desculpa por demorar tanto, mas acabou, eu juro que acabou — os pingos passaram para Noel que molhou a regata dela e a apertou em um forte abraço de liberdade.

Noel e outras dezenas de pessoas foram soltas naquele dia. A luta dele precisaria continuar, o mundo não tinha sido resolvido, mas pelo menos alguns problemas tinham.



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